Nem todas as mulheres têm liberdade de escolher cabelo branco
Algumas mulheres podem ter mais influência para mudar a crença de que as grisalhas são desleixadas, mas talvez elas não passem de 1%.
“A grande mudança não vai ser feita por mulheres da minha idade”, me disse Elca Rubinstein, de 75 anos. “A grande mudança acontecerá quando mais pessoas da sua idade deixarem os cabelos brancos. A minha parte está feita. Agora passo o bastão.”
Segurei o bastão e fiquei olhando, sem saber o que fazer. Eu já acreditava que a única maneira de naturalizar o cabelo branco era termos mais mulheres deixando a tintura de lado. Também sentia falta de ver mais grisalhas jovens. Sempre que uma amiga de Paris enviava foto de uma grisalha na rua, eu perguntava: “Tem jovens também?”
Até escrevi sobre o silêncio do cabelo branco das mulheres de 30 anos, mas ainda não tinha conectado todas essas questões ou puxado alguma responsabilidade para a minha geração. “Seria interessante você escrever para quem tem a sua idade”, sugeriu Elca. “Para as mulheres que ainda veem a mãe e a avó pintando o cabelo.”
Elca parou de pintar há dez anos, logo após se aposentar do cargo de economista sênior do Banco Mundial, em Washington. “Se eu soubesse, naquele dia, o que sei agora…”, ela diz, cantarolando um bolero de quando era menina. “Teria deixado o cabelo grisalho antes e entrado nas reuniões com homens grisalhos olhando de igual para igual.”
Conheci a Elca após assistir ao documentário “Branco e Prata” (já falei dele aqui e aqui). Ela foi responsável pelo argumento e pela captação de recursos do média-metragem, além de ser uma das entrevistadas. “O objetivo não era dizer que o branco é mais bonito, mas, sim, dar a liberdade de escolha dessa cor”, ela diz, contando que o lema do filme, que acabou ficando de fora, era “beleza é liberdade de escolha”.
Essa liberdade, porém, está mais distante de algumas mulheres do que de outras. Elca chama a atenção para o fato de que nenhuma das entrevistadas do documentário é negra ou de classe social mais baixa. Segundo ela, foi uma decisão para dialogar com as mulheres que mais influenciam a construção dos padrões estéticos de beleza.
“O dia em que as atrizes de televisão e de cinema pararem de pintar o cabelo, as outras também param”, ela conta. “No caso das mulheres de classe mais baixa, elas não pintam apenas para parecerem mais jovens. Também pintam para serem parecidas com as da classe alta.”
Eu não tinha pensado nisso. Não basta que mais mulheres parem de pintar o cabelo. Para que o grisalho seja visto mais rápido como natural, bom seria se certas mulheres parassem. “Precisamos criar esses modelos”, conta Elca. “Não sou eu. Mas quem sabe são mulheres como você.”
Eu poderia passar um tempo tentando definir quem são as mulheres como eu. Elas têm 30 e tantos anos. São brancas. Magras. Com curso superior. Independentes financeiramente. Mas qual desses critérios importa para o cabelo branco? Todos? Alguns?
Também fiquei imaginando quantas mulheres são parecidas comigo, seja lá o que isso signifique. Cruzei alguns dados sobre a população brasileira. As mulheres representam 51,8%. Dessas, 46% são brancas. Dessas, 15,8% têm entre 30 e 39 anos. E dessas, 14,4% vivem em famílias com renda acima de R$ 8.159,00. O resultado é cerca de 1% das mulheres.
A conta certamente tem furos, tanto conceituais quanto matemáticos. Para começar, existem vários critérios para dividir a sociedade em classes. Perguntei para uma amiga economista se ela sabia qual deles eu deveria considerar. “Ixi, não tem consenso. Escolhe um e segue reto toda vida”, ela disse, brincando. “Mas, para fazer essa tua conta, sugiro que tu leias sobre interseccionalidade.”
A consultora em diversidade e inclusão, Cris Kerr, explica a interseccionalidade de um jeito simples: “Quanto mais caixinhas da diversidade a pessoa fizer parte, mais preconceito sentirá”. Ou seja, a mulher branca tende a sofrer menos discriminação do que a negra; a negra de classe alta menos do que a negra da periferia; a negra da periferia menos do que a negra transgênero da periferia… E assim por diante.
Dados do IBGE de 2019 traduzem essa discriminação. Mulheres recebem 77,9% do salário dos homens. Pessoas brancas recebem 73,9% a mais do que as negras. Os salários mais altos são os dos homens brancos, seguidos das mulheres brancas, dos homens negros e, por último, das mulheres negras.
A primeira vez que pensei sobre esse privilégio aplicado também ao cabelo foi após conversar com a Jana Viscardi, linguista que já apareceu nesse texto sobre o verbo assumir. “Você vê mulheres bem-sucedidas de cabelo branco e isso passa a ser visto como estilo”, Jana disse. “Mas existem outras implicações dependendo de raça e classe social.”
Como ela disse, uma coisa é ficar chateada porque está se achando feia com o cabelo. Ou até mesmo aguentar um colega do trabalho que pergunta: “Você não vai pintar esse cabelo?” Mas a realidade pode ser muito diferente para mulheres que estão procurando emprego ou são hostilizadas dentro da própria casa, para citar alguns exemplos.
“Sei que sou uma mulher padrão: branca, classe média, magra. Se quiser voltar a pintar o cabelo, tenho dinheiro”, contou Jana. “Nesse sentido, é uma escolha. Mas é difícil falar em escolha individual. Algumas mulheres falam que pintam porque são vaidosas, mas ignoram o quanto nossas escolham vêm de um processo social.”
Como diz a Camila Faus, uma das criadoras da SHEt_alks, nessa coluna para a revista Elle que também virou vídeo, cabelo branco é uma escolha — e todas deveríamos ter a chance de fazer nossas escolhas com autonomia. “O problema é que a gente acha que é uma escolha com autonomia, mas na verdade existe toda uma narrativa por trás que faz com que a gente sempre escolha a mesma coisa.”
Elca também concorda que falta muito para conquistarmos o que o lema sugerido para o documentário “Branco e Prata” dizia: beleza é liberdade de escolha. Além de toda a construção dos padrões estéticos, cada mulher tem a sua realidade. “Não adianta sair com a bandeira de que a mulher pode tudo”, ela diz. “A mulher pode tudo quando tem a sorte de nascer em um ambiente, em uma sociedade e em uma família que a empoderou.”
Quando parei de pintar o cabelo, pensei que era só uma escolha — meio difícil, mas, ainda assim, era só cabelo! Logo descobri que não era. Mesmo com muitas reflexões internas, sei que a minha experiência é uma pequena parte de toda essa história.
Lembro a mensagem que recebi de uma prima quando ela leu o terceiro texto dessa newsletter: “Cá, preciso te dizer. Eu não sabia que ia ter tanto assunto! Uma das coisas que pensei quando li o primeiro texto foi: gente, o que mais dá para falar de cabelo branco?”
Ops! Parece que estamos só começando.
Um beijo,
Camila
Para admirar
A Lilian Rosa é uma brasileira que mora em Milão. Em 2014, ela parou de alisar os cabelos. Em 2018, abandonou o tonalizante. Em um de seus posts no Instagram, ela diz: “Como vou fazer meu antes e depois? Se antes eu era linda e agora eu estou igual antes”. Essa é a autoestima que vêm da liberdade <3
Para descobrir
Ainda no Instagram, o Clube das Grisalhas é o lugar para ver as grisalhas da vida real. E não apenas as estilosas que parecem vencedoras de concursos de beleza — no caso, aquela beleza sem liberdade de escolha. Entre as várias mulheres que aparecem lá, tentei ser imparcial e escolhi o último post que mostra a Priscila, criadora do perfil.
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