E se, em vez de assumirmos os brancos, assumíssemos os tingidos?
Sempre vejo matérias e posts de redes sociais usando o verbo assumir para falar sobre grisalhas. Reviro o olho todas as vezes.
O verbo assumir me incomoda. Tudo bem quando a palavra tem o sentido de alguém que assumiu um cargo, assumiu a culpa ou assumiu um filho. Mas os portais de notícias adoram falar de mais uma famosa que assumiu os cabelos brancos. Quando leio essas manchetes, me pergunto se o verbo deveria estar ali. Por via das dúvidas (e do meu incômodo), fujo do termo.
As duas notícias abaixo só aumentam o meu ranço com o assumir. Enquanto Fafá de Belém assume e pede desculpas, Reynaldo Gianecchini exibe e ganha elogios (como eu queria ver esses comentários do Instagram do Gianecchini em um post de uma mulher grisalha!). Mas essa dobradinha tem pouco ou quase nada a ver com o assumir — a questão aí é se os fios brancos estão em um homem ou uma mulher.
Pesquisei sobre o verbo assumir no contexto dos cabelos. Não encontrei nada além de mais reportagens que escolheram o verbo para o título. Pensei que poderia encontrar algo relacionado à homossexualidade — “tal pessoa assumiu ser gay”. Vi alguns links problematizando o uso do verbo, como essa matéria falando para as pessoas não se assumirem gays, mas, sim, declararem-se.
Também encontrei um capítulo de uma dissertação de mestrado do departamento de letras da PUC-Rio, chamado “Revelar-se para existir”. A pesquisadora Adriana Pinto Fernandes de Azevedo aborda como a revelação da sexualidade é quase como um ato de confissão. Assume-se. Confessa-se.
No entanto, sei que a internet tem argumentos para defender qualquer ponto de vista. Eu buscava evidências que provassem a minha tese. Ignorava qualquer sinal que dissesse o contrário. Sendo assim, decidi que nunca usaria o verbo assumir aqui nas newsletters.
Mas agora já escrevi quinze vezes a palavra assumir. Só nesse texto. Isso aconteceu porque conversei com uma linguista. Alguém que entende e vai além dos meus achismos. Jana Viscardi é doutora em Linguística pela UNICAMP, além de grisalha da quarentena. Seu slogan é “como nos comunicamos importa”. E ela tem milhares de seguidores no Instagram que se importam em saber como se comunicam.
Antes de mais nada, Jana vai para o dicionário. “Tomar para si, avocar, apropriar-se. Assumir um cargo. Apresentar, exibir…”, ela vai lendo, passeando pelos diferentes sentidos (aqui tem uma lista extensa). “Se pensarmos no sentido do verbo, está dentro. A pessoa assume uma posição, um cargo, uma postura.”
Banho de água fria em mim. Mas Jana continua. “A pergunta que podemos fazer é: ‘Por que é preciso dizer que uma mulher assumiu os brancos? Por que tantas mulheres falam sobre isso como se fosse preciso assumir uma posição?’”
Para Jana, a resposta nos leva a uma questão social. E que, como ela ressalta, tem diferentes implicações dependendo de classe social, raça e gênero. “Um grupo grande de mulheres não usa cabelo branco. Existem razões sociológicas ligadas à maneira como se pensa a aparência da mulher. O que ela deve aparentar. E o que se pode assumir nesse sentido.”
Além disso, cada pessoa pode ter seu próprio entendimento. Jana lembra quando postou uma foto antes do último corte de cabelo. Seus fios tinham duas cores: grisalho em cima, luzes embaixo. “Por que você não assume logo esse cabelo?”, uma seguidora questionou. Jana ficou confusa. “Ué, mas já está assumido. Na cabeça dessa moça, porém, eu assumiria quando cortasse o cabelo e ficasse só com o branco.”
Comento que, para o entendimento que dei para o verbo, as pessoas que tingem os cabelos é que deveriam assumir algo. “Bem colocado”, ela responde. “Como se esse estado fosse, entre muitas aspas, escondido. É o caso de assumir a sexualidade. Mas, na verdade, não é escondido. Pode estar escondido da pessoa que não prestou atenção nisso.”
Bom mesmo seria não precisar discutir essa questão. “Quero que chegue o momento de o cabelo ser apenas cabelo. Não precisa assumir nada. Já está dado. As pessoas estão vendo. Será que precisamos fazer um posicionamento oficial do cabelo branco?”, ela diz, rindo.
Eu até queria pedir um posicionamento oficial. Do cabelo tingido. As notícias poderiam ser assim: “Reynaldo Gianecchini assume que pinta os cabelos” ou então “Madonna assume que pinta os cabelos”. Mas tudo bem. Chega de implicância. Vou assumir (no sentido de aceitar) que assumir está longe de ser um problema.
Um beijo,
Camila.
Para admirar
A maioria das notícias com famosas grisalhas que assumem os brancos mostra mulheres brancas de cabelos lisos ou ondulados. Essa matéria do UOL levantou a questão e trouxe o depoimento de três negras que não pintam os cabelos. Uma delas é a Wladia Góes, figurinista e produtora de moda.
Para pensar
“As pessoas diziam que, se eu pintasse o cabelo, iria ficar dez anos mais jovem. Eu pintei o cabelo e não fiquei nem dois minutos mais moça. Fiquei de cabelo pintado.” — Ana Luiza Nascimento, professora de inglês e modelo profissional desde 2019, em entrevista para a Folha de S.Paulo.
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