Uma mulher pode se cuidar sem se importar com a sua estética?
Uma mulher que se cuida é a que está com a tintura, o esmalte, a depilação, a sobrancelha e a maquiagem em dia — e não aquela que cuida da saúde física e emocional.
“O quanto uma mulher se cuida ainda é muito associado à estética”, disse uma das pessoas que estava em uma roda de conversa do livro “Sem tinta” nos últimos dias. “É o cuidado dela com o cabelo, com a roupa, com a unha.”
À primeira vista, parece não haver novidade nessa constatação. Mas fiquei um tempo pensando nisso depois que fui embora. Na visão de muitas pessoas, uma mulher que se cuida é a que está com a tintura, o esmalte, a depilação, a sobrancelha e a maquiagem em dia — e não aquela que cuida da saúde física e emocional.
Já ouvi vários relatos de mulheres que pararam de pintar o cabelo e começaram a receber críticas como: “Nossa, mas por que você não está se cuidando? Está doente? Quer que eu compre tinta pra você?”. “Ah! Ela se abandonou, parou de se cuidar!”
Outras mulheres da roda também compartilharam relatos sobre cuidado. Uma delas contou que a raiz do seu cabelo branco aparecendo era percebida como desleixo pelas pessoas, até que passou a ser vista como cuidado quando ela engravidou e agora estaria priorizando a saúde do bebê.
Cheguei em casa do evento e fui ver o que diziam os dicionários online. Assim que cliquei no link do Michaelis online, senti saudade de abrir aquele pesado dicionário Aurélio Buarque de Holanda de capa dura que consultei durante toda a adolescência. Então telefonei para o meu pai.
Ao contar por que eu queria uma fotografia da página com a palavra “cuidado”, ele não pensou duas vezes: “Mas evidente que cuidado não tem nada a ver com estética!”.
Até vermos o que estava nas páginas amareladas da edição de 1999. O termo “cuidado” passou longe da beleza e se referiu à atenção, precaução, cautela, diligência, zelo, encargo, responsabilidade, inquietação de espírito, pensado, imaginado, meditado, previsto, calculado, suposto.
Mas o verbo “cuidar”, que começou com o significado de imaginar, pensar, meditar, cogitar, julgar, supor, atentar, pensar, refletir, tratar e prevenir-se, finalmente chegou à sua última definição: “Ter cuidado consigo mesmo, com a sua saúde, com a sua aparência ou apresentação”.
E fechou com um trecho retirado de um livro para ilustrar o contexto: “A própria Dona Marfisa … já andaria à procura dos dois, espigada na sua cinta, os sapatos de salto alto, os cabelos anilados. Era mulher que se cuidava.” A frase é do livro “Portas Fechadas”, publicado em 1957 pelo contista Moreira Campos.
Eu andava com esses pensamentos sobre o que é ou não cuidado quando a newsletter da jornalista Jessica DeFino chegou à minha caixa de entrada. O título era “Maquiagem como meditação, skincare como terapia” (tradução livre do inglês, “Makeup As Meditation, Skincare As 'Girl Therapy'”). Eu já sabia que o texto publicado no jornal The Guardian seria uma crítica a essa associação entre cuidado estético e mental.
Jessica começa contando que não gostou nem um pouco de ver matérias com títulos como “Como transformar sua rotina de beleza em uma sessão de meditação”, “Como aplicar maquiagem pode servir como uma forma de meditação diária”, ou “‘Makeupfulness’ é onde maquiagem e atenção plena se encontram”.
Essa palavra difícil de pronunciar — makeupfulness — seria uma junção de maquiagem com mindfulness, termo que se refere a uma técnica de atenção plena. Como diz a matéria da Glamour traduzida para a versão brasileira da revista: “Combinar nossa maquiagem com uma pitada de calma e o estado mental do dia é o tipo de multitarefa que podemos adotar”.
Mas Jessica então nos lembra o que significa meditação ou mindfulness: “uma prática que deveria centrar no espírito, não no tom de pele”. Difícil discordar. Ainda assim, entendo quem tem a rotina de skincare como um momento de relaxamento. Mas, se fosse necessário encaixar essas ações em uma palavra, talvez sejam escolhas mais estéticas do que de cuidado.
Gosto de pensar que guardamos a palavra cuidado para falar de uma boa noite de sono, da atividade física, da meditação, da alimentação saudável e do tempo que passamos com quem amamos.
Também gosto dos exemplos que meu pai deu antes de olhar a palavra cuidado no dicionário. “É como quando estamos em um ambiente público, o piso está molhado e uma placa diz: cuidado! Ou então quando vocês eram menores e estavam saindo de casa e a gente dizia…
Se cuida!”.
Um beijo,
Camila
Para pensar
“Amor-próprio significa que tenho uma relação comigo mesma baseada em confiança e lealdade. Confio em mim mesma para me cuidar, e assim sou leal à minha voz interior. Abandonarei a expectativa que os outros têm de mim antes de abandonar a mim mesma. Decepcionarei a todos antes de decepcionar a mim mesma.” — Glennon Doyle, em seu livro “Indomável”.