A caça às bruxas e às mulheres de cabelo branco
Essa história de feitiçaria não é uma invenção de Halloween e revela muito sobre o papel das mulheres na sociedade e o preconceito contra as grisalhas.
Sorte que sei boiar. Se me jogassem na água e eu afundasse, seria considerada bruxa. Se um barco enfrentasse uma dificuldade em alto mar, a quilômetros de distância de mim, eu poderia ser culpada. Se eu pedisse esmola e alguém negasse, mas depois essa pessoa adoecesse ou tivesse um problema, só poderia ser praga minha. Ou será que não?
Todos esses casos me levariam ao mesmo destino: ser condenada e executada, seja queimada na fogueira ou enforcada em praça pública. “Ai, credo!”, você pode pensar. Foi o que pensei quando comecei a ler o best-seller da Mona Chollet, editora-chefe do Le Monde Diplomatique, cujo título é “Bruxas” (no original em francês, “Sorcières”; na tradução em espanhol, “Brujas”). Ainda não há tradução para o português.
Logo entendi que muito do que vivemos hoje — das desigualdades de gênero ao preconceito contra as mulheres mais velhas — vem da época da caça às bruxas nos séculos 16 e 17. Segundo a autora, o número de mulheres mortas durante esse período continua sendo uma incógnita. Na década de 1970, a estimativa girava em torno de um milhão. Hoje em dia, dizem que foram entre cinquenta e cem mil.
“O cálculo não inclui as mulheres que foram linchadas, nem as que se suicidaram ou morreram na prisão”, conta o livro. “Outras foram exiladas ou tiveram suas reputações arruinadas. Mas todas as mulheres, mesmo aquelas que nunca foram acusadas, sofreram os efeitos da caça às bruxas. A encenação pública da tortura, poderoso instrumento de terror e disciplina coletiva, incentivava-as a serem discretas, dóceis e submissas.”
Falar alto, ser muito independente, ter uma sexualidade mais livre, encontrar demais as amigas ou viver sozinha era o suficiente para levantar suspeitas. Até mesmo faltar à missa muitas vezes, ou nunca faltar, era um comportamento estranho. O livro também traz casos de mulheres denunciadas por seus próprios maridos — se eles tivessem uma amante e não soubessem mais o que fazer com a esposa, acusá-la de bruxaria era uma ótima saída para tirá-la de cena.
Tenho vontade de contar tudo o que li sobre como a caça às bruxas — ou seria a caça às mulheres? — moldou a nossa sociedade hoje. Mas várias mulheres já fizeram esse trabalho. Entre os poucos livros que têm tradução para o português estão “Mulheres e caça às bruxas”, da italiana Silvia Federici, e “As bruxas: Intriga, traição e histeria em Salem”, da estadunidense Stacy Schiff.
E o que isso tem a ver com a conversa sobre cabelo branco? Pasme. Tudo. A primeira linha do livro da Mona Chollet descreve a bruxa da “Branca de Neve”, clássico filme da Disney: “O cabelo grisalho sob um capuz preto, seu nariz encurvado e com uma verruga, seu sorriso estúpido com um único dente na mandíbula inferior e suas sobrancelhas espessas sobre olhos selvagens que acentuam ainda mais sua expressão maligna”.
A madrasta da “Cinderela”, a Cruella dos “101 Dálmatas” e até mesmo o papel de Meryl Streep em “O Diabo veste Prada” reforçam essa associação entre o mal e os cabelos brancos, como lembra a cientista política, Claire Robinson, em seu ensaio “Grey is a feminist issue”, (em português, “Cabelo branco é uma questão feminista”). Vou acrescentar mais uma grisalha à lista: Dona Clotilde, conhecida como a Bruxa do 71, do seriado Chaves.
Essas personagens — e muitas outras — foram transformando a mulher de cabelo branco em uma figura ameaçadora; e a bruxa, em ficção. O tempo apagou a história real vivida poucos séculos atrás por várias mulheres, incluindo brasileiras. Uma delas, Maria da Conceição, se desentendeu com um padre por conta dos seus medicamentos à base de ervas medicinais para curar doentes. Morreu em uma fogueira em São Paulo, em 1798.
Poucas pessoas conhecem essa realidade — até bem pouco tempo atrás, eu fazia parte desse grupo. O livro da Mona Chollet desconstruiu a imagem que eu tinha das bruxas. Antes, essa palavra me levava às personagens caricatas de chapéu pontudo ao redor de um caldeirão, ou ao folclore de Franklin Cascaes em Florianópolis (por isso a cidade é conhecida como Ilha da Magia), ou às três bruxas do filme “Abracadabra”, de 1993, que apareceram tantas vezes na Sessão da Tarde.
Eu tinha as melhores lembranças desse filme, até ler a crítica da jornalista Rose Dommu no portal Mic. Traduzido para o português, o título do artigo seria “Bruxas na tela: boas para a moda, ruins para o feminismo?”. O spoiler está dado, mas vamos à sinopse.
“O filme mostra três bruxas que aparentemente conseguiram seu poder por meio de um acordo com o Diabo. As irmãs Sanderson são retratadas como megeras malignas obcecadas com os ideais de juventude e beleza e farão de tudo para possuí-los. Elas são convocadas por uma virgem e então frustradas por três crianças que servem como modelos de inocência.”
Por essas e outras invenções do cinema, a intelectual Silvia Federici reforça a importância de conhecermos nosso passado. “As pessoas acham que as bruxas são personagens imaginárias. Não são”, ela diz neste vídeo para o canal da editora Boitempo. “Por muito tempo a história da caça às bruxas foi apagada e transformada em lenda. Esses tipos de iniciativas dos filmes de Hollywood não são inocentes e não podemos aceitá-los.”
Como também diz Mona Chollet, essas representações estão instaladas em nossa imaginação. Ao citar o pensamento da escritora Kristen J. Sollee, ela ilustra que os filmes da Disney sempre nos apresentaram o conflito entre as velhas bruxas e as jovens beldades, fazendo com que a coragem de uma mulher repouse em sua fertilidade e juventude, nunca na sabedoria duramente conquistada.
Essa é uma das razões pelas quais, segundo Mona, os grisalhos são mais bem-vistos nos homens. “A experiência que o cabelo branco traz é considerada sedutora e reconfortante neles, e ameaçadora nelas.” Ela ainda vai além: “Por que tantas vezes os cabelos brancos de uma mulher levam à suposição de que ela se ‘descuidou’, senão porque evocam a imagem da bruxa vestida com trapos?”
Vimos essas imagens desde a infância. Aprendemos a não gostar das bruxas más e a apreciar as princesas. Torcemos o nariz ao ver uma mulher de cabelo branco — apesar de magicamente acharmos charmoso nos homens. Apagamos essa história macabra de caça às bruxas com um feitiço, ignorando qualquer conexão com as nossas antepassadas.
Vasculhando a internet atrás de mais informações, encontrei este podcast sobre bruxas e mulheres sábias. A capa do programa, chamado Serendipity, me lembrou um filme adolescente água com açúcar. Depois de ouvir o episódio, entendi que as aparências enganam.
No final da conversa, uma das apresentadoras fez a seguinte provocação: “As pessoas podem não usar mais a palavra bruxa como no passado, mas usam substitutas com a mesma conotação. A ideia da mensagem continua a mesma: não saia da linha, não seja rebelde, não conteste as estruturas patriarcais e religiosas. Ou você será queimada — talvez não fisicamente, mas metaforicamente”.
Essas ideias assustam? Desculpa. Depois de contar toda essa história, talvez eu devesse ter escrito um texto menos macabro, para ir contra o senso comum das bruxas más. Nesse caso, porém, nossa realidade é mesmo sombria. Bu. Happy Halloween!
Um beijo,
Camila.
P.S.: Agradeço a Mariá Boeira Lodetti e a Daniela Levasseur por terem me apresentado o livro da Mona Chollet. Deu vontade de encontrar vocês um dia para discutirmos todas essas questões.
Para admirar
Fiquei hipnotizada com a beleza da especialista em blends de chás e designer de joias, JoAni Johnson (assim mesmo, com a letra A em caixa alta). Desde que foi descoberta na rua por um fotógrafo, ela também virou modelo e estrelou campanhas de várias marcas de luxo, entre as quais Gucci e Fenty.
Para descobrir
Sabe como a fake news de que mulheres são bruxas ganhou força? Com a circulação de um livro chamado Malleus Maleficarum, publicado em 1487 por um monge alemão e distribuído por toda a Europa graças à invenção da prensa de Gutenberg. Esta matéria do portal Aventuras na História conta que esse foi o segundo livro mais vendido na Europa por quase dois séculos, ficando atrás apenas da Bíblia. A escritora Mona Chollet compara esse guia de caça às bruxas ao Mein Kampf, de Adolf Hitler.
Para pensar
E não é que, dessa vez, parece que a Disney fez um “favor” às grisalhas? Elsa tem um cabelo loiro quase branco, e sua irmã, Anna, exibe uma mecha grisalha. A Disney também fez um “favor” às mulheres, pois Frozen foi a primeira animação do estúdio dirigida por uma mulher.
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A história das bruxas é complexa e envolve muitos outros assuntos, como a ascensão do capitalismo. Me conta se você já tinha ouvido falar algo sobre isso? Deixa um comentário no post ou responde ao e-mail :)
Enriquecedor. Aprendi muitooo com esse texto. Já vou repassar para umas amigas que pensam meio "fora da caixa" como eu. Obrigada por tanto.