O novo começo que o “Sem tinta” me trouxe – e as histórias que não estão no livro
A melhor parte de um evento é sempre o final. Afinal, eu já sei tudo o que vou falar, mas não faço ideia do que as pessoas vão contar depois de me ouvirem.
“O fim, quando chega, puxa a cadeira para um novo começo.” Li essa frase no livro “Mil Milhas”, da Tamara Klink, na época em que estava terminando a escrita do “Sem tinta”.
Cada pessoa pode interpretar de um jeito. Na época, pensei em como o fim da transição para o cabelo branco estava marcando um novo começo mais livre da opinião das outras pessoas, da autocobrança, do medo de envelhecer e de alguns padrões (não todos, claro, será que alguém é?).
Só agora entendi que também estava diante de outro novo começo. Quando terminei de escrever e fiz os eventos de lançamentos, fiquei muito feliz por ter conseguido chegar ao fim. Eu tinha pensado em desistir muitas vezes durante o caminho.
Mas, assim como o fim da transição tinha me trazido um novo começo, o fim da publicação do livro também puxaria a cadeira para um novo começo. Eu só não sabia que seria mediar rodas de conversas e fazer palestras em livrarias, órgãos públicos e empresas.
Aliás, na primeira vez que me chamaram de “palestrante”, quase olhei para trás para ver com quem estavam falando. Até que o mês de março acabou e percebi o quanto gostei da intensidade de tudo o que vivi.
Descobri como gosto de ver o livro gerando novas histórias. Dois dias atrás, fiz uma palestra no COMDIM, o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Florianópolis. Contei como a pesquisa e as entrevistas do “Sem tinta” se conectavam com envelhecimento, etarismo e padrões de beleza.
Para mim, porém, a melhor parte de um evento é sempre o final. É aí que está surpresa — afinal, já sei tudo o que vou falar, mas não faço ideia do que as pessoas vão contar depois de me ouvirem.
Quando terminei de apresentar o que tinha planejado e agradeci as pessoas que estavam ali, uma delas levantou a mão. “Enquanto você falava, meu coração se encheu”, ela disse. “Chorei, me emocionei. Tenho 55 anos, parei de pintar o cabelo há oito meses e tava muito em dúvida se continuava assim ou não. Me encontrei em tudo o que você falou e agora tá decidido!”
O que mais me chamou a atenção nessa fala não foi a decisão de continuar a transição para o grisalho, mas sim a leveza que ela demonstrou estar sentindo por se libertar do medo de parecer mais velha.
Na sequência, uma mulher mais jovem contou que sempre escondeu sua mecha grisalha na parte da frente com tintura, mesmo quando a mãe a proibia. Ela sujava o banheiro de tintura vermelha, até hoje gosta de ser ruiva e pretende seguir assim.
Mas de repente ela nos surpreende com este relato: “Essa palestra me libertou para que eu possa libertar a minha mãe”. Segundo ela, o diálogo com a mãe costuma ser assim:
— Filha, quero parar de pintar o cabelo.
— Não, mãe! Vai ficar muito velha!
— Mas, filha, e o problema da química da tintura?
— Usa henna!
Esse foi o gancho para que uma terceira história fosse compartilhada. Uma das participantes pediu a palavra e contou que uma amiga da mesma idade que ela, 60 anos, tem cabelos brancos desde jovem.
“Sempre que nos encontrávamos e ela estava querendo ficar grisalha, eu dizia: ‘Pinta esse cabelo! Tá ficando com cara de velha!’. Até que um dia cheguei lá e ela tinha pintado de azul! Falei que parecia uma arara!”
Pouco tempo atrás, a amiga passou por cima das críticas e finalmente deixou seus cabelos brancos. “Repeti que ela tava ficando muito velha. Mas agora entendi que isso é o que ouço desde criança: ‘cabelo branco envelhece’. A sociedade, os amigos e a família botam isso na cabeça da gente. ”
Esses foram os dois primeiros relatos que ouvi de pessoas “assumindo” terem impedido outras mulheres de ficarem grisalhas. Sem querer, elas nos mostraram como é importante falarmos sobre o livro, mesmo entre quem não tem a menor intenção de parar de tingir.
Afinal, elas continuarão com seus cabelos ruivos e loiros, mas agora vão apoiar quem escolher descobrir a cor natural. Essa é tradução da liberdade de escolha, com ou sem tinta.
Um beijo,
Camila
Para ouvir
Dei entrevista para dois podcasts de jornalistas que admiro. Um é o POD Ser pauta, da Cris Moraes; o outro é o Levo na Bolsa, da Ana Holanda. Nos dois casos, falamos tanto sobre o que está por trás da decisão de parar de pintar o cabelo quanto da escrita, algo que nos une.
Para pensar
“Eu dava tanta importância para a aparência física. Hoje vejo que o que realmente importa é o bom funcionamento do corpo.” — Relato de Ana Cláudia Garcia, enfermeira especialista em cuidados paliativos, para a matéria “O que a morte nos ensina sobre a vida?”, publicada esta semana na revista Gama.