Para lembrar de não assumir que a minha transição é igual à sua
Afinal, as histórias com a transição para o cabelo branco podem ser diferentes, apesar dos nossos sentimentos em comum.
Minha primeira transição começou em outubro de 2018. Mas eu ainda não sabia disso quando marquei um horário com a visagista Debora Gotlib, fundadora da Casa Júpiter. O que eu sabia é que ela não trabalhava com beleza, mas, sim, com a desconstrução do que entendemos como beleza. Esse conceito ainda era nebuloso pra mim, mas eu estava aberta.
A conversa começou como uma sessão de terapia. Sentadas uma de frente para a outra, ela me perguntou sobre o meu momento de vida, se eu estava em uma fase mais expansiva ou introspectiva. Antes de sugerir um corte — mais comprido, curto ou até mesmo com franja —, ela ouvia as minhas respostas.
Debora descreveu características da minha personalidade com base nos traços do meu rosto. E acertava todas — ou pelo menos é assim que me lembro. Conversamos por mais de meia hora. Vasculhei sentimentos, falei sobre planos futuros. Até que ela se levantou, mexeu no meu cabelo e fez a pergunta que jamais imaginei ouvir: “Você sabia que o seu cabelo é cacheado?”.
Devo ter respondido algo como “oi?”. “Há quanto tempo você faz progressiva?”, ela emendou, deixando claro que o meu liso não enganava ninguém. Pensei um pouco. Fazia onze anos que eu fizera a primeira progressiva, ou botox, ou escova de diamante, ou qualquer outro nome diferente que foi aparecendo ao longo dos anos.
Lembrei que, até os meus cinco anos de idade, o meu cabelo enrolava. Depois ficou liso, bem escorrido. Até que se transformou no que eu chamava de liso rebelde, que era o liso com uns fios difíceis de domar. Algumas horas mais tarde, já no computador fazendo pesquisas, descobri que essa descrição era típica de alguém que acreditava ter cabelo liso, mas tinha cabelo ondulado e não sabia.
Topei descobrir como era o meu cabelo de verdade. Fazia três meses desde a última vez que eu o alisara. Debora me ensinou a secar os fios de cima para baixo, com a ajuda de um difusor. Fui me adaptando à nova rotina. Descobri que existiam técnicas e produtos para modelar e finalizar os cachos do meu falso liso rebelde.
Quando a pandemia começou, eu estava há vinte meses sem progressiva. Só tenho essa informação porque fiz a conta agora. Nem me lembro da espera. Já a transição para a cor está acontecendo há vinte e um meses. Faz cerca de seiscentos e trinta dias que observo o cabelo crescer. Quando cheguei ao décimo quarto mês, eu já tinha pensado tanto, mas tanto, que queria escrever.
Por isso fiquei tão surpresa ao ver um post do Clube das Grisalhas perguntando qual transição tinha sido mais difícil: a da textura ou a da cor? “Como alguém pode ter dúvida?”, pensei. Quando li os comentários, levei um susto. Várias mulheres responderam que parar de alisar tinha sido pior.
Fiquei tentando entender o motivo. Nos dias em que a transição da textura me incomodava, era só alisar com chapinha ou enrolar as pontas com baby liss. Mas, na minha cabeça, não existia um truque equivalente para disfarçar a cor. Até que entendi o óbvio: essa era a minha cabeça. Existem muitas cabeças no mundo, com diferentes origens, histórias e experiências passadas.
Lembrei da minha conversa com a Lílian Rosa, uma brasileira que mora em Milão. Em 2014, ela parou de alisar. Em 2018, deixou grisalhar. Diferentemente de mim, Lílian é negra. Passou a vida alisando o cabelo com químicas agressivas, que provocavam feridas no couro cabeludo. A coloração só podia ser feita quinze dias depois, para não machucar ainda mais.
“Até que ponto todo esse sacrifício valia a pena?”, ela me pergunta. “Ficava lindo e maravilhoso, mas era uma alegria ilusória. Depois vinha a decepção. Tinha que entrar com tratamento para recuperar o fio. Passados doze dias, o branco já estava vindo. Eu me olhava no espelho e via como se fosse um mofo surgindo.”
Lílian se lembra de uma cena de 2013, quando viajava do Brasil para a Itália. Na conexão no aeroporto de Zurique, na Suíça, ela chamava a atenção pela altura de 1,72m, pelos cabelos tingidos, alisados e alongados com mega hair e pelos olhos claros da lente de contato.
“Lembro que as pessoas me olhavam com surpresa”, ela diz. “Me achavam bonita. Mas, ao mesmo tempo, eu pensava: quem vai cuidar do meu cabelo na Itália?” Um ano depois, ela se casou com o namorado italiano e se mudou para o país onde, como ela diz, ainda não se vê produtos para cabelo afro à venda. Era como o Brasil da sua infância, quando a única opção era Neutrox.
Se, para mim, decidir parar de fazer progressiva foi como decidir não comer açúcar por um tempo — é chatinho no começo, mas depois acostuma —, imagino que para Lílian o processo foi muito diferente. Não me ocorreu lhe perguntar qual transição deu mais trabalho: a da textura ou a da cor. Quando conversamos, eu ainda não tinha essa perspectiva.
Ouvir sua história, contudo, mostra que percorremos caminhos diferentes. Quando ela decidiu parar de usar química para alisar, a família quis entender o que ela faria com o cabelo. “Vai ficar desse jeito?”, perguntaram. E agora Lílian me diz: “Desse jeito como, né? Desse jeito feio, ruim, desarrumado. A expressão que usam é sempre essa: ‘desse jeito’.”
Mas ela estava cansada das químicas. Em outubro de 2014, três meses depois de alisar pela última vez, pegou uma tesoura e fez o seu próprio big chop — expressão em inglês que se refere ao corte de toda a parte alisada do cabelo, deixando apenas os poucos centímetros de cachos que começam a aparecer.
“Foi realmente uma mudança”, ela diz. “Não é só estética. É uma mudança que acontece dentro de você. E então transborda. A revolução acontece no cabelo, mas vai para outras áreas da vida. Você busca a sua identidade. Quando aceitei meu cabelo, comecei a ver a beleza. É um percurso transformador. Quando falamos de cabelo, falamos da nossa história de vida.”
Lílian me contou vários episódios de racismo — dos apelidos preconceituosos que recebeu na infância na escola às atitudes que teve já mais adulta, quando estava do outro lado da sala de aula, sendo a professora de português de uma maioria de crianças brancas e uma ou outra negra. “Eu não era só professora”, ela diz. “Era psicóloga.”
Mais recentemente, como professora voluntária de língua portuguesa em uma universidade italiana, ela ouviu uma aluna de 78 anos questionando o seu grisalho.
“Por que você usa o cabelo assim?”, perguntou a senhora de cabelos tingidos de preto.
“Porque eu gosto”, respondeu Lílian.
“Mas você consegue ver beleza?”, insistiu a aluna.
“Vejo beleza. No crespo e no grisalho.”
“Ai, eu não consigo.”
“Você está sendo muito sincera”, respondeu Lílian. “Mas a questão de ver beleza parte de quem está vivendo isso.”
Lílian já tinha encontrado a beleza naquela cor, assim como encontrou nos seus cachos alguns anos antes. “É a tal da opinião alheia”, ela diz. “Uma pessoa pode gostar de uma cor vibrante; outra, não. Tudo bem se não gostar. Já me apaixonei pelo processo. Passei até a sorrir mais. Descobri que o meu superpoder é o sorriso. Quando sorrio e fecho os olhos, como uma japonesa negra, a mágica acontece.”
A mágica também acontece quando escuto a sua história, diferente da minha. Antes de desligarmos, ela diz que a nossa conversa foi muito boa. É recíproco. A cada nova conversa, percebo como o meu mundo e as minhas ideias eram pequenas. A cada nova conversa, amplio um pouco esse pequeno mundo.
Um beijo,
Camila.
Para pensar
“A onda do cabelo grisalho não é um movimento do ‘todas tingindo’ para o ‘todas assumindo’. É uma escolha estética pessoal sobre como lidar com o próprio envelhecimento. É um movimento pela liberdade de escolha, onde o cabelo grisalho entra como uma possibilidade — linda, diga-se de passagem.” — Cris Guerra, comunicadora e escritora.