O que uma terapeuta grisalha diz sobre parar de tingir o cabelo
Segundo Telma Lenzi, dialogamos com vários personagens internos — alguns mais tradicionais, outros mais livres. A grande questão está em saber qual voz protagoniza as nossas escolhas.
“És mais feliz hoje ou antes, quando tingias o cabelo?”, pergunto para Telma Lenzi. Fazia dez minutos que havíamos nos encontrado pessoalmente pela primeira vez. Até então, eu a conhecia apenas pela internet.
Sabia que Telma era grisalha da quarentena, terapeuta e fundadora da ASSIM, uma ONG que oferece atendimento terapêutico gratuito ou a custo social. Desde que uma amiga me apresentou o seu trabalho e o seu cabelo, eu estava curiosa para descobrir a visão de uma terapeuta que passou pela transição para os grisalhos.
Trocamos mensagens e, dois meses depois, cheguei ao seu sítio, para onde ela acabara de se mudar. Antes da pandemia, a troca do apartamento no centro de Florianópolis para uma casa sem sinal de celular seria tão improvável quanto parar de tingir o cabelo.
Me acomodei no sofá do seu escritório. Ela se sentou à minha frente. Parecia até uma sessão de terapia, mas eu estava ali para entrevistá-la. E, naquele dia, a primeira coisa que queria saber era o seu grau de felicidade com os grisalhos.
“Olha”, ela responde. “Não vou negar que tenho um general, que pertence à voz da cultura tradicional. Às vezes, me questiono. Já fui xingada. Nessas horas, sinto falta de representatividade, de ver mais mulheres grisalhas. Mas, quando sinto que criei algo novo para mim, me divirto muito. Mais me divirto do que sofro.”
Disfarço a frustração. Claro que eu preferia ouvir que ela estava felicíssima. Sem essa história de general. Talvez eu quisesse uma resposta fantasiosa para me convencer de que, quando terminasse a transição e ficasse bem resolvida, não teria mais um dia difícil com o cabelo. Como se eu não tivesse vários dias difíceis durante a época em que tingia...
Para a minha sorte, Telma não esconde os próprios sentimentos — e me faz olhar para os meus. Ela conta que conversa bastante com os seus personagens internos, que, segundo a teoria que desenvolveu, são criados a partir do mundo à nossa volta.
Em um artigo publicado em 2013, a terapeuta explica que podemos ser, ao mesmo tempo, heroínas e vítimas; generais, guarda-costas ou ciganas; vitoriosas ou derrotadas. “Nossos personagens internos são vozes múltiplas, por vezes contraditórias. (…) Não conseguimos vê-los, nós os invocamos através de reflexão e diálogo.”
Por um lado, Telma reconhece a sua voz interna de vanguarda, que adora inovar. Por outro, esbarra com a do general, que tenta desestabilizá-la, dizendo que o cabelo branco a envelheceu. “Mas já tenho contato com essa voz”, ela diz. “Então brinco. Gosto de dizer: ‘fica quieta, tu não mandas nada! Qual voz será protagonista das minhas escolhas? É isso que temos que cuidar.”
Descubro que, por fazermos parte de uma cultura que ainda dita muitas regras para nós, mulheres — precisamos estar sempre bonitas, magras, maquiadas e de cabelo pintado — naturalmente temos essa voz tradicional. “Porém, quanto mais vejo mulheres deixando o cabelo branco”, explica Telma, “mais fácil será atualizar essa voz ultrapassada.”
Enquanto a escuto, penso nos meus personagens internos agindo sem que eu perceba. Se estou em um ambiente mais sério, meu cabelo me incomoda. Se estou entre pessoas próximas, nem lembro que a cor dele ainda não é muito comum. Se estou diante de uma mulher grisalha, como é o caso agora, sinto uma identificação instantânea. Minhas reações são diferentes, apesar de o cabelo ser sempre o mesmo.
Conto para Telma que, assim que decidi parar de tingir, não me incomodei em ver a raiz branca no espelho. O que me incomodava era imaginar outras pessoas me vendo assim. “Para tu veres a força da cultura!”, ela diz. “Todo mundo tem essa voz chata, que esmaga, critica, censura. Mas, quando ficas atenta a fazer diálogo interno e não deixar essa voz ir pra frente, ficas cada vez mais livre.”
Mas o que significa ser livre? Muitas grisalhas falam sobre a liberdade de não ir mais ao salão. Outras falam sobre a liberdade de não seguir regras. Outras sobre a liberdade de não se importarem com a opinião alheia. Outras sobre serem quem são. Às vezes, sinto como se todas usássemos a mesma palavra, mas cada uma se refira a uma situação diferente.
“É o sentido que cada uma dá para liberdade”, diz Telma. “Isso é lindo. Cada mulher tem na sua história pontos que a aprisionam. A significação é de cada pessoa, cada processo. Não tem um certo. Nem é uma coisa só.”
Como exemplo, ela diz que sempre quis ter mais tempo. Logo, ganhar uma tarde livre a cada quinze dias foi um presente. Mas o conceito vai além. “Minha impressão é a de que a liberdade vem de nos libertarmos de uma construção que não vale mais para nós”, ela diz. “Quando nos libertamos do conceito imposto, e então fazemos o que queremos, não o que a cultura manda, a sensação de liberdade é muito legítima.”
Telma sente falta de ver as mulheres se apoiando na luta pela liberdade de cada uma ser do jeito que quiser. “Inclusive quem quiser pintar”, ela diz. “Está tudo certo. Não é essa questão. A questão é a liberdade de ser, estar, pensar. Querer ter alguém ou ser feliz sozinha. Fazer o que quiser. É um movimento iniciante, mas está bonito.”
Antes de ir embora, pergunto o que ela diria para alguém que está pensando em viver a transição. “Minha primeira pergunta seria sobre a motivação”, ela responde. “Qual é o desejo? É um desejo de liberdade? De entrar nessa bandeira? De ajudar outras mulheres?”
Se eu tivesse ouvido essa pergunta lá atrás, há vinte e um meses, não teria resposta. Talvez a minha única motivação fosse descobrir até que ponto a raiz branca não me incomodaria. Essa sensação, no entanto, durou pouco. Logo entrei no desconforto da transição — e só persisti porque não conseguia mais me imaginar pintando o cabelo. Fiquei entre os dois mundos.
Esse momento passou. Agora, se alguém me perguntasse se sou mais feliz hoje do que antes, quando tingia, minha resposta seria sim. Sou mais feliz. Mas não o tempo todo. Alguém é? Meu general também aparece de vez em quando, tentando me impor suas regras. Ando querendo férias desse personagem. Quem sabe ele descobre a liberdade e pede logo para sair.
Um beijo,
Camila.
Para pensar
Além de ser impossível agradar a todos, também é absolutamente desnecessário.” — Ana Suy, escritora, psicanalista e pesquisadora.
Para descobrir
Talvez você já viu que a OAB de São Paulo elegeu a primeira mulher presidente em seus 89 anos de história. Talvez você também viu que a vencedora, Patricia Vanzolini, está no meio da transição para o cabelo branco. Ou seja, enquanto disfarço essa fase com boné, ela fez campanha com os fios de duas cores. Quando eu crescer, quero ser igual a ela.
Separei um trecho que ela escreveu sobre o processo:
“Tenho saudade e apego a meus cabelos castanho, que não existem mais, sonho com meus cabelos todos brancos, que não existem ainda, e desperdiço meu presente, esse segundo mágico no qual somos todos serem em transição, nunca acabados, nunca parados, mas vivos e fluindo com o rio da vida.”
Para admirar
Comecei a acompanhar o trabalho da Ana Figueiredo quando ela só falava de cabelo branco. Agora, o assunto se estendeu para beleza natural e massagens no rosto em substituição aos procedimentos estéticos, como o Botox. Recentemente, ela contou que se alguém, cinco anos atrás, aparecesse com esse papo de massagem facial, ela diria “me poupe!”. É maravilhoso estarmos abertas à mudança.
Ainda não leu os últimos textos?
Quais personagens internos causam mais alvoroço na tua vida? Deixa um comentário no post ou responde ao e-mail :)
Incrível como sempre.
Sempre que tenho acesso ao seu conteúdo, me redescubro internamente.
Hoje, percebi que tbm tenho personagens dentro de mim.
As vezes eles ditam as regras.
As vezes!
Bjs Camila,
Obrigada