Cheguei ao fim da transição para o cabelo branco
Depois de dois anos de espera, finalmente olhei os restos de tintura no espelho pela última vez.
Ao ver os últimos vestígios de cabelo tingido caindo no chão do salão de beleza, fiquei pensando se seria muito estranho se eu pedisse para levar uma porção daqueles fios para casa. Não havia mais ninguém ali, além de mim e do Maykon Tomaz, o cabeleireiro que nos últimos meses cortara, pouco a pouco, meus fios castanhos artificiais.
Eu queria eternizar aquele momento. Fazia dois anos que esperava pelo dia em que finalmente me sentaria na cadeira do salão, vestiria aquela capa protetora por cima da roupa e olharia os restos de tintura no espelho pela última vez. O dia chegou, mas não me emocionei. Não senti nada diferente ou especial.
Parte de mim queria repetir o gesto dos meus pais, que guardaram os tufos do meu primeiro corte de cabelo da vida. A emoção os levou a coletar aqueles pequenos fios, colá-los em um durex junto com a data escrita em um papel e guardá-los em um envelope. Reconheço a letra do meu pai nas palavras “Cabelo de Camila, agosto/85”.
Estou olhando para esses fios quase 37 anos depois. Na época em que saíram da minha cabeça, não tinham nem um ano de vida. Nem de um ano de morte, na verdade. Nossos fios são tecidos mortos — ou não estariam em perfeito estado depois de tanto tempo sufocados dentro de um envelope. Dou risada ao constatar que o cabelo é considerado um sinal de juventude, mas, ironicamente, está morto.
Estão mortos tanto os fios do meu cabelo de bebê guardados há décadas quanto os fios com tintura que estão no chão do salão agora. Contudo, não são iguais. O cabelo de bebê provavelmente tinha a estrutura intacta, tanto das cutículas quanto do córtex. Já o que está no chão tem buracos feitos por tintura, secador, chapinha, sol e até mesmo pela esfregação com xampu.
Deixei aqueles montinhos de fios tingidos largados no chão. Logo alguém os varreria, sem cerimônia de festa ou despedida. Agora, enquanto escrevo sobre a tesourada que finalmente concluiu minha transição, observo que nunca imaginei que a morte seria uma palavra presente. Sempre idealizei uma data emotiva, para refletir sobre as mudanças que aconteceram em como eu me vejo e como vejo o mundo.
Porém, assim como não teremos o dia oficial de comemoração do fim da pandemia, o dia de hoje não representa a virada do tingido para o grisalho. Apelo para o clichê de que o fim da transição não marca o nascimento de uma nova Camila. Não morri hoje. Fui cortando crenças e estereótipos enquanto escrevia sobre cabelo.
Essa história também não acaba hoje. Passei as últimas semanas conversando com cientistas que estudam a química, a biologia e a estrutura dos cabelos. Quero entender por que o fio amarela, se os brancos são mais ásperos, o que existe dentro do fio, qual é a diferença entre o pigmentado e o não pigmentado, como funcionam os produtos cosméticos, o que danifica mais — tintura ou descoloração, progressiva ou chapinha?
Os meus fios foram o ponto de partida para investigar esse assunto e ouvir mulheres que resolveram questionar por que o branco era a única cor proibida para os nossos cabelos. Talvez eu não tenha eternizado o fim da transição guardando os restos tingidos em um potinho, mas estou guardando essas histórias para mais pessoas a encontrarem em outro tempo ou lugar.
Um beijo,
Camila.