A beleza de ter cabelo branco e estar fora do padrão
Uma violinista e a administradora do maior grupo de grisalhas do Facebook contam como é não se encaixar no padrão desde antes de serem grisalhas.
“Você foi falando isso e fiquei pensando…”, respondi para Daniela De Bonis, enquanto olhava para o seu rosto na tela do Zoom e disfarçava que os meus olhos tinham dado uma leve marejada. “Nosso objetivo de estar aqui vivendo não pode ser vestir calça 36. Não pode ser esse o objetivo da vida.”
Daniela estava contando que nunca se encaixou no padrão de beleza. Nunca teve o corpo de manequim. Nunca teve o cabelo liso do comercial de xampu. Nunca foi a menininha comportada que se sentava de pernas cruzadas. Não se importava com o que as pessoas pensavam ou falavam a seu respeito.
“Isso só amplificou com o cabelo grisalho”, ela diz. “Mas percebo que a grande maioria das mulheres não pensa dessa forma. Ainda tem muita gente preocupada em se encaixar nos padrões, agradar marido, filhos, vizinhos e até o balconista da padaria. E tipo: quem é o balconista da padaria?”
A última vez que Daniela fez luzes no cabelo foi em setembro de 2016. Abandonou a química quando descobriu que estava grávida. Como ela diz, foi a desculpa que usou para as pessoas que perguntavam sobre a sua raiz branca aparecendo. “Ah! Mas quando a Malu nascer você vai pintar imediatamente, né?”, ela ouvia como resposta.
A cobrança continuou no trabalho. Ao voltar da licença-maternidade, Daniela foi transferida de departamento. O novo gestor a acolheu bem, mas disse que tinha um problema: não dava para aceitar aquele cabelo branco. “Adoro você”, ela respondeu. “Você conhece o meu trabalho. Mas não vou pintar.” Ele ficou desconfortável, afrouxou a gravata; ela ficou arrasada.
No dia seguinte, ao entrar no escritório, o gestor falou: “Eu sabia que você daria um jeito! Está ótimo”. O que havia mudado? Daniela passara no cabeleireiro para cortar as pontas tingidas. “O problema não é o cabelo branco”, ela diz. “O problema é a transição, o choque entre as duas cores. É uma fase muito difícil.”
Durante esse período, ela começou a buscar outras mulheres na mesma situação. “Camila, creia… Naquela época, só encontrei duas na internet: a Kika e a Rubia Rubita. Eu queria ver mais exemplos. Por isso, decidi criar um grupo no Facebook.”
Hoje, o Grisalhas Assumidas e em Transição já tem mais de 125 mil membros, participou de duas campanhas publicitárias à convite do Facebook e, em 2021, foi um dos 25 grupos da América Latina selecionados para a Aceleradora de Comunidades, um financiamento para que os grupos extrapolem a rede social. A primeira iniciativa será um evento para grisalhas.
“Não criei o grupo pensando que um dia entraria para a Aceleradora”, ela conta. “Criei porque precisava de ajuda. Lá, as mulheres se conectam e se identificam. Todo mundo passa pelas mesmas coisas. As histórias se repetem. Então você pensa: ‘Estou sendo criticada, mas não estou sozinha. Estou fora do padrão da sociedade, mas dentro do padrão da transição.”
Apenas quatro dias depois de conversar com Daniela, encontrei a violinista Iva Giracca. “Nunca estive dentro do padrão”, ela disse, ao lembrar que, aos 9 anos, tinha a mesma altura de hoje: 1,68m. Também nessa idade, encontrou os primeiros fios brancos. Aos 11, já tocava na Orquestra Sinfônica de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Aos 12, dava aulas de violino. Aos 13, pintou o cabelo de vermelho pela primeira vez.
“Sempre fui muito grande para a minha idade”, ela complementa. “Todo mundo me achava adulta, mas eu era uma pirralha. Por isso, deixar o cabelo branco e continuar sendo fora do padrão não é tão diferente para mim. Talvez, para alguém que passou a vida inteira dentro de um padrão, que traz um certo conforto, seja diferente.”
A última vez que Iva tingiu o cabelo foi em 2015. Mas, até chegar ao branco, foi um processo. Como estava tingido de vermelho, ela começou passando um tom castanho. Depois, foi fazendo luzes, muitas luzes. “A essa altura, já estava detonadíssimo”, ela lembra. “Os cabeleireiros falavam para ir devagar, mas eu não queria devagar. Eu queria branco.”
Então Iva comprou uma água oxigenada 40 volumes, a mais potente de todas. Passou duas vezes, deixando cada etapa agir por mais de quatro horas. “Fiquei com cabelo amarelo Piu Piu”, ela diz, rindo, mas contando que não desistiu. “Aí comprei um tonalizante que prometia deixar branco. Descolori mais uma vez e ficou branco palha. O cabelo, que era comprido, nem mexia.”
Me diverti ouvindo a saga. Quem também ria conosco era Maykon Tomaz, cabeleireiro e visagista que corta e penteia o seu cabelo para todos os shows que ela faz com a Camerata Florianópolis. Foi com o tal cabelo palha que ela o conheceu, quando entrou no salão e pediu que ele a deixasse com “cara de chique”. “Faça o que for necessário”, ela lhe disse. “Ele abriu o sorrisão, pegou duas tesouras e tátátátá.”
Perguntei se, além do cabelo, mais alguma coisa nela mudara. “A autoconfiança foi uma das questões mais importantes de 2015 para cá”, diz Iva. “Tive um reconhecimento muito grande na profissão. Acredito que a minha postura diferente levou a uma observação diferente da minha figura, o que causou um reconhecimento, o que trouxe mais responsabilidade e uma coisa foi alimentando a outra…”
Lembrei de algo que Daniela havia dito. Para ela, existem muitas transições. A de cor é apenas uma delas. “Você passa pela transição de como as pessoas te veem — elas começam a te ver diferente. E pela transição de como você realmente se enxerga.”
Depois de cinco anos administrando o grupo no Facebook, o que mais Daniela aprendeu? “A principal lição que tiro de lá é que a minha dor é diferente da sua”, ela diz. “Tenho que ter empatia pelo sentimento dos outros. Também ficou ainda mais evidente que quem tem dinheiro passa muito melhor do que quem não tem. Por que algumas pessoas dizem que o cabelo branco fica bom em uma mulher da elite, mas não em uma mulher da periferia?”
Ainda temos um longo caminho a percorrer. Mesmo as mulheres que se sentem fora do padrão, podem estar mais perto do padrão do que outras. De qualquer forma, dificilmente alguma alcançará o ideal utópico de beleza. A pesquisa “A Real Verdade Sobre Beleza: Segunda Edição”, feita pela Dove, mostrou que apenas 4% das mulheres em todo o mundo se consideram bonitas.
Mas Daniela termina otimista. “Sabe o que acho legal?”, ela me pergunta. “Estamos abrindo caminho. Fico imaginando que, quando a minha filha tiver cabelo branco, não vai passar por tudo o que passamos. Não vai ter vergonha do corpo dela, do cabelo dela.” Afinal, como também disse Iva, “estar dentro do padrão é um negócio muito complicado”.
Um beijo,
Camila.
Para admirar
Ainda vemos poucas grisalhas liderando grandes corporações, mas elas existem. Daniela Cachich é uma delas. Faz cinco anos que parou de tingir. Hoje, aos 48 anos, é presidente da unidade de negócios da Ambev para bebidas alcoólicas diferentes de cerveja. Antes, foi vice-presidente de marketing da PepsiCo Foods Brasil e da Heineken, além de diretora na Unilever. Aqui tem um relato de como foi a transição e o processo de platinar todo o cabelo.
Para pensar
“A indústria da beleza nos convence de que nossas coxas, nosso cabelo frisado, nossa pele, nossas unhas, nossos lábios, nossos cílios, nosso pelo nas pernas e nossas rugas são repulsivas e devem ser cobertas e manipuladas, e assim aprendemos a não confiar nos corpos que habitamos.” — Glennon Doyle, em seu livro “Indomável”, revoltada ao descobrir que passara décadas da vida atendendo às expectativas alheias.
Estava com saudades das suas palavras Camila !
Me vi nesse depoimento !
Seguimos....